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22 Anos de Marcha da Consciência Negra: das ruas à formulação de políticas públicas

Atualizado: há 2 dias


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Por Valéria Silvestre


22 Anos de Marcha da Consciência Negra: das ruas à formulação de políticas públicas.


A Marcha da Consciência Negra, ao longo de mais de duas décadas, consolidou se como um dos mais importantes instrumentos de mobilização política do movimento negro brasileiro. Desde sua primeira edição, a Marcha tem ocupado as ruas como espaço legítimo de denúncia, afirmação e proposição, convertendo o clamor popular em força estruturante para a formulação de políticas públicas de igualdade de oportunidades e por respeito racial. Passados 22 anos, o que se observa é que as ruas foram mais do que palco de protestos, tornaram-se laboratórios políticos, onde ideias, pautas e demandas coletivas se transformaram em agendas institucionais em marcos legais de grandes impactos e também marcando atuações de governos locais e federal.


1. História e legado de um movimento coletivo


A Marcha se estabelece em continuidade à trajetória histórica do Movimento Negro Unificado (MNU), criado em 1978, mas que soma tantas outras organizações que, desde o pós-abolição, denunciaram a exclusão social, as violências e o racismo estrutural. Essa herança histórica conferiu à Marcha da Consciência Negra uma identidade própria: a de mobilização contínua e pedagógica, que reafirma a importância da memória, da ancestralidade, da ocupação dos espaços públicos como formas de resistência, mas também do estabelecimento da emblemática diversidade negra, com desafio de pulsar numa amplitude intergeracional.

Cada edição da Marcha é, portanto, uma aula pública sobre cidadania e democracia, um ato político que reconta a história do Brasil sob a ótica de quem o construiu com trabalho, arte e dignidade, mas foi sistematicamente apagado das narrativas oficiais.


2. A força das ruas como instrumento político


As ruas são o território simbólico e concreto da Marcha. São nelas que se expressam a pluralidade do povo negro: mulheres, homens, juventudes, quilombolas, povos de terreiro, a diversidade religiosa, os artistas, as pessoas empreendedoras e as lideranças comunitárias, todos(as) unidos(as) pelo propósito de construir um país antirracista e socialmente justo. Ao longo desses 22 anos, a Marcha tem demonstrado que a mobilização popular é uma etapa essencial da política pública.

Cada cartaz, cada palavra de ordem e cada corpo presente nas avenidas é também uma forma de pressionar o Estado a cumprir seu papel constitucional de garantir direitos e promover equidade. Essa presença contínua nas ruas contribuiu para a criação e fortalecimento de políticas e instituições como a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), os Conselhos de Igualdade Racial, a Lei 10.639/2003, o Estatuto da Igualdade Racial, a Lei 12.288/2010, o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, Lei 14.759/2023, assim como, as políticas de cotas raciais no ensino superior e no serviço público, os programas de atendimento as necessidades da população quem compõem um cabedal de Políticas de Ações Afirmativas.

São conquistas que nasceram da base, da escuta das comunidades e da persistência das lideranças negras que atuam no Movimento Negro, pessoas que transformaram as dores e a indignação em proposição.


3. Da denúncia à proposição: a institucionalização da luta


A consolidação da Marcha como espaço político de referência demonstra a maturidade do movimento negro na transição da resistência simbólica para a incidência institucional. A Marcha não se limita à denúncia; ela propõe caminhos, redige documentos, articula frentes parlamentares e colabora com gestores públicos comprometidos com a pauta racial.

Essa capacidade de articular-se com o poder público, sem perder o vínculo com a base, é o que garante a legitimidade da Marcha e a continuidade de seus efeitos transformadores.


4. Juventudes negras e o futuro das políticas de igualdade racial


As juventudes negras, que hoje protagonizam a Marcha, incorporam novas linguagens e tecnologias à luta histórica. São comunicadores, artistas, empreendedores e educadores que utilizam as redes sociais como arenas políticas e constroem novas narrativas de pertencimento e resistência. Essas juventudes expandem o alcance da Marcha, dialogando com as pautas de forma contemporânea, como o enfrentamento ao genocídio da população negra jovem, a valorização da estética afro-brasileira, o empoderamento econômico e o direito à educação superior de qualidade e o direito à cidade.

Ao fazer isso, os(as) jovens negros(as) reafirmam que a luta antirracista precisa ser intergeracional, conectando memória e inovação, respeito ao passado para a construção fundamentada e sólida de um futuro.


5. Estética, economia e representatividade


A presença negra na moda, na cultura e na economia criativa também reflete a influência direta das pautas da Marcha na formulação de políticas públicas. O reconhecimento da estética afro-brasileira como expressão política de identidade impulsionou a criação de editais, programas de incentivo e feiras voltadas a empreendedores negros, além de valorizar este(a) profissional nos meios de produção, de propaganda e marketing. Praticamente todos os produtos do mercado da moda passaram a consideram este grupo de consumo, mas também no âmbito da criação.

Hoje, a moda afro-brasileira é também um território de poder econômico e simbólico. Defender a inclusão de marcas negras, oferecer linhas de crédito específicas e garantir espaços de visibilidade em grandes eventos são ações que fortalecem o protagonismo negro e ampliam o impacto das políticas de igualdade racial.


6. Políticas públicas como legado coletivo


O percurso de 22 anos da Marcha da Consciência Negra revela que as políticas públicas mais transformadoras nascem do diálogo com os movimentos sociais. Quando esses movimentos encontram seu posicionamento firme e legítimo, tornam-se capazes de provocar o Estado a reconsiderar suas propostas e torná-las mais efetivas. Quem vive o racismo tem pressa! É dessa urgência que brotam as soluções inovadoras e as agendas de justiça social. São nas ruas, nos coletivos, nas periferias e nas universidades que surgem as ideias capazes de redesenhar o Estado brasileiro.

A Marcha é, portanto, uma escola de cidadania, que fortalece a formação de lideranças, articula redes e influencia a construção de leis, programas e ações afirmativas em todo o país. Contudo, um dos grandes desafios atuais está no distanciamento simbólico e político de parte da população negra que ascendeu social e economicamente. Muitos dos que “cresceram na vida”, alcançando espaços de prestígio, educação formal ou estabilidade financeira, nem sempre reconhecem que suas conquistas individuais foram, em grande medida, viabilizadas por políticas públicas forjadas nas lutas do movimento negro. O mérito é coletivo!

Essa desconexão fragiliza o sentido coletivo da luta, pois enfraquece o vínculo entre experiência individual e conquista histórica. É preciso resgatar essa consciência de pertencimento: compreender que cada vaga na universidade, cada espaço no serviço público, cada iniciativa de empreendedorismo negro é também fruto da pressão política das marchas, nada veio espontaneamente, veio das lideranças comunitárias e dos movimentos que ousaram exigir igualdade. É fruto de luta!

Reafirmar essa consciência é fundamental para que o ciclo de avanços não se interrompa. A emancipação individual deve caminhar junto com o compromisso coletivo, e o reconhecimento de quem veio antes na luta antirracista, pois, enquanto houver desigualdade racial, a ascensão de alguns não representará a liberdade de todos. Numa sociedade racista, não há liberdade real.


Conclusão:

A Marcha é o coração social da Consciência Negra


Com 22 anos de caminhada a atividade Marcha da Consciência Negra segue sendo o coração social do movimento negro, uma força viva na busca do estabelecimento da consolidação da democracia e na formulação de políticas públicas afirmativas. Seu legado ultrapassa a comemoração do 20 de novembro, a Marcha é um projeto contínuo por um país digno, que reivindica memória, justiça e reparação. A cada nova edição, reafirma-se que a luta do povo negro não é apenas por “reconhecimentos midiáticos”, mas por reconstrução social, por reparação efetiva, por mobilidade social, pois a população ainda encampa a maiorias das pessoas em situação de pobreza e vulnerabilidade.

Adentramos no século 21, e essa reconstrução não pode ser mais adiada, e ela começa, como sempre, nas ruas, onde o povo negro transforma dor em ação, resistência em política e presença em espaços de decisões e poder.


Sobre a autora:


Gestora Pública | Especialista em Gestão de Políticas Públicas (USP) | Mestre em Gestão e Práticas Educacionais (UNINOVE) | Especialista em Direitos Humanos e Movimentos Sociais (UNIFESP) | Especialista em Poder Legislativo (Escola do Parlamento – Câmara Municipal de São Paulo) | Ativista Social (ambientalista e antirracismo) | Colaboradora (Diretora Executiva) na Revista Digital Conexão Black Brasil | Membro do Movimento Negro Unificado (MNU) | Cofundadora (Diretora de Relações Institucionais e Políticas Públicas) da MITOCON Brasil (doenças mitocondriais raras) | Empreendedora socioambiental fundadora da SER SILVESTRE Socioambiental, com atuação na transição energética solar fotovoltaica | Comunicadora e palestrante. @valeriasilvestre.val

 
 
 

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